O aniversário foi esquecido, o dia dos pais comemorado na escolinha não contou com a presença do principal homenageado. No Natal, não houve ligação para desejar boas festas. Quando ficou doente, a mão do pai não estava próxima para ser apertada para aliviar a dor. Quantas histórias como essa você conhece? Essas e tantas outras situações são comuns na vida de crianças que cresceram criadas apenas pela mãe, sem a presença do pai. E junto com o crescimento, veio o sentimento de rejeição, que muitas vezes, leva a um quadro de depressão. Com isso, muitos filhos, após atingir a maioridade, decidem processar os próprios pais por abandono afetivo.
Essa possibilidade de processo ocorre até mesmo quando os pais pagam as pensões alimentícias com regularidade, conforme explica a advogada Mariana Regis, especialista em Direito de Família. “Muitas pessoas pensam que não há abandono afetivo quando há o pagamento de pensão. Mas temos várias decisões judiciais sinalizando que o cuidado não é somente o material. Lógico que não podemos reduzir a importância dos recursos financeiros, mas sabemos que a falta do cuidado afetivo causa danos irreversíveis”, conta a especialista. Nesses pedidos de indenização, muitos filhos buscam a reparação pelos danos morais sofridos pelo abandono e pedem, inclusive, o pagamento de tratamento psicoterapêutico.
A advogada, que defende uma linha mais feminista no Direito de Família, afirma que ao longo da infância e da adolescência, essa pessoa sofreu muitos danos pela ausência paterna, seja na festa da escola, quando ficou doente, e até mesmo no dia a dia. E quando o pai não dá notícias, essa criança se sente abandonada e rejeitada por aquele que tem o dever de cuidar e protegê-lo.
A advogada cita uma declaração da ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando decidiu que era possível reparação por danos morais por abandono afetivo: “Amar é faculdade, cuidar é dever”. “O que observamos é muitos homens dizendo para as mães que se elas forçarem o convívio será pior, pois não sentem nada pelos filhos. Mas nós não estamos pautando o amor entre pais e filhos. Estamos pautando o cuidado, o dever de zelo”, assevera. Ela complementa uma realidade da maternidade: “Algumas mães admitem não amar os filhos, mas não se esquivam do dever de cuidar, o que é permitido aos homens pela sociedade”. A advogada acrescenta que o Judiciário brasileiro, de forma geral, já tem entendido que cabe a reparação por abandono afetivo, arbitrando, muitas vezes, indenizações que variam entre R$ 150 mil e R$ 200 mil, com custeio de tratamentos psicológicos diante dos danos causados.
MÃES PODEM SER INDENIZADAS?
Para Mariana Regis, sim. “A conduta negligente dos homens afeta também a vida das mães, sem dúvidas”, frisa. “O Direito Civil nos diz que o dano deve ser descrito em sua total extensão. Quando a gente pleiteia reparação por danos morais, pleiteamos por todos os danos causados àquela família”, explica. “É uma discussão que nós, advogada feministas, estamos tendo, da possibilidade de provocar o Judiciário para responsabilizar esses pais pelos danos causados à vida dessas mães, e não são poucos os danos”, reforça.
“A sociedade sempre culpa a mãe pela gravidez, pela escolha do pai para o filho. Mas o único responsável por isso é o homem. Quantas mulheres não sofrem ao verem seus filhos sofrendo pela ausência do pai? Muitas mulheres me confidenciam que ligam para os pais e mentem para os filhos falando que foram eles que ligaram para verem as crias felizes. Mas é mentira, pois o pai nunca ligou, sempre esquece do aniversário da criança, diz que vai ligar no dia para dar parabéns, e mesmo sendo avisado com antecedência, não o faz. Isso gera um dano para esta mãe”, afirma.
A advogada declara que muitas mulheres estão recorrendo à terapia para lidar com esse sofrimento. “É uma devastação. Eles deixam um rastro de sofrimento, não só na criança, mas nas mães também. Ela é, no mínimo, testemunha do sofrimento do filho, sem falar do impacto financeiro”, destaca. O sofrimento também é estendido aos avós. “Se essa mulher tem uma família afetuosa, uma rede de apoio, essa família sofre junto também. Muitas avós também relatam o quanto estão tristes com o abandono, que se sentem adoecidas, perdendo noites com tamanho sofrimento”, diz Mariana Regis.
Mas se essa mulher não tem um apoio familiar, ela é ainda mais culpabilizada com acusações da família de que não soube escolher o pai dos filhos, ainda sofre quando há dependência financeira dos familiares. Todas essas situações contribuem para o seu adoecimento. Além do que, sempre há acusações de que as mulheres são “doidas, oportunistas e interesseiras” em toda disputa de alimentos e cuidado.
Para além deste sofrimento, Mariana, que sempre circula pelos corredores dos fóruns com processos debaixo dos braços, diz que o Poder Judiciário também faz com que esta mulher desista da busca pelo direito dos próprios filhos diante da burocracia e do cansaço processual. “Os pais podem pagar multas astreintes a cada vez que não aparecem, quando não cumprem os acordos de cuidados do filho. Mas a cada vez que ele falha, essa mulher se vê indo até o Judiciário cobrar essa multa. E nós, que advogamos na Bahia, sabemos bem a realidade do Judiciário baiano, ainda mais agora na pandemia”, contextualiza. “É uma carga mental enorme, e essas mulheres precisam escolher suas batalhas”, lamenta. Por isso, sempre que possível, Mariana Regis orienta a busca de um acordo amigável entre as partes, para evitar a via crucis do Judiciário.
Vermelhinho